Não adianta comprar uma cama de R$ 60 mil e não conseguir apagar (conferindo em seu smartphone as dezenas de boletos para pagá-la). Além do conforto e silêncio, uma boa noite de sono precisa também que a superfície do colchão e a cabeça do consumidor não esquentem.
Na pandemia, a indústria dos leitos de luxo acelerou um crescimento que já vinha da última década. Sem poder girar seu capital e seu corpo pelo mundo, teve muito endinheirado que decidiu dar ares de hotel cinco estrelas a seus dormitórios. E eles puderam dormir como anjos em "produtos de muito valor agregado" pela tecnologia, com espumas criadas para os astronautas, ou pelo artesanato, com um mestre colchoeiro montando à mão camadas com crina de cavalo e de camelo.
Juro que a ideia de uma reportagem para testar colchões pomposos não foi minha: a editora encontrou um texto sobre as "camas encantadas" da marca Hästens, que chegam a valer US$ 400 mil (R$ 2 milhões), e pensou em mim. Desconfio que fiz a fama e agora tenho que deitar na cama.
Sim, sou devoto da "siesta", mas posso colocar a culpa dessa verdadeira heresia na era da eficiência em minha ancestralidade letárgica, afinal, nasci no Chile e meus antepassados sonharam e babaram muito nas tardes calorentas em que nem cachorro louco se arrisca sob o sol.
Pra piorar, sou daqueles que dormem em qualquer lugar e sem Lexotan: em pé no ônibus superlotado, em sofá de sala de espera, embaixo da mesa no trabalho, em festa encostado na caixa de som, em restaurante vegetariano (vou mais pela rede que pela comida) e até na mesa de bar (papo sério de jornalista é o melhor sonífero, pena que os colegas me acordam na hora da conta). No período de home office, por alguma razão não fico feliz quando marcam uma reunião virtual para 13h ou 14h.
Como ninguém ia me permitir pernoitar em lojas tão diferenciadas, decidi fazer meus testes do colchão na hora do torpor após o almoço. Infelizmente, seja pela preocupação de relatar a experiência e coletar o máximo de informação, seja pelo barulho do entorno, seja porque é difícil mesmo relaxar sob o olhar de um vendedor, não consegui cair nos braços de Morfeu durante esse esforço de reportagem. De qualquer forma, para quem capota em qualquer superfície e posição, confesso que me senti no céu recostado sobre essas espumas espaciais e matelassês de malha belga em forma de nuvem.
UM POTRO QUE TE DERRUBA
O colchão mais caro do mundo não está à venda no Brasil. O modelo "Grand Vividus" foi lançado em 2020, é feito inteiramente à mão e leva 600 horas de trabalho de artesãos de uma fábrica na cidade de Köping (Suécia), onde as camas Hästens são feitas desde 1852.
O rapper canadense Drake desembolsou US$ 400 mil para ser o primeiro comprador, e as lojas da marca em Los Angeles e Nova York acumulam listas de espera. Entre suas camadas internas está uma com quatro quilos de crina de cavalo. Na fabricação, o pelo equino é afofado manualmente para criar um tufo uniforme que funciona como "milhões de pequenas molas", garantindo microventilação e bem-estar ao afortunado humano (o pocotó também fica bem e arejado sem suas madeixas, garantem os produtores).
Anteriormente, o modelo "Vividus" era o berço esplêndido do mundo, com seu slogan "tente ficar acordado". Celebridades como Cristiano Ronaldo, Maria Sharapova e Will Ferrell despenderam perto de US$ 200 mil por esse modelo com a metade da crina, do trabalho e do preço do "Grand Vividus".
Os executivos da Hästens justificam o preço dizendo que é um investimento para pessoas acostumadas a ganhar milhões e que precisam de descanso para ganhar mais. Na Suécia, a elite local deixa como herança esses colchões, e a indústria disponibiliza gratuitamente, três vezes por ano e por até três décadas, o envio de técnicos para repararem os modelos desgastados pelo tempo ou pelo uso.
O que há de mais parecido por aqui, sem essas cifras tão delirantes, é o modelo Stallion (garanhão, em inglês). Ele segue a lógica artesanal e de materiais 100% naturais. É montado em Jaraguá do Sul (Santa Catarina) pelo mestre colchoeiro Sidnei Guerra, que assina a obra em etiqueta na lateral — o nome de seus auxiliares na montagem e costura e a data de finalização também são informados no manual de uso.
Esse colchão custa por volta de R$ 28 mil e conta com camadas de crinas importadas da Áustria, fibra de coco da Polinésia, cashmere do Tibete, lã de ovelha da Eslovênia e látex e malha feitos na Bélgica. O feliz proprietário vai pra cama junto com uma população de probióticos no forro, que inibe a proliferação de ácaros porque come mais rapidamente as escamações do corpo e o pó da casa que pousa por lá.
O valor sobe para perto de R$ 60 mil se acrescentarmos uma base articulada eletrônica Restonic, importada dos EUA. Apertando o controle remoto, ela te coloca na posição "gravidade zero", com inclinações nas costas e nas pernas que deixam joelho e coração alinhados. Outro botão dá uma angulação de 15 graus para o dorso, evitando refluxos, apneias e roncos.
"As vendas triplicaram. Nossos clientes têm dinheiro e decidiram investir na casa e no conforto durante a quarentena", conta o vendedor Naldo ("Só Naldo mesmo", diz ele), da loja Bed & Design, revendedora da cama mais cara do mercado local.
Naldo me explica as vantagens para combater hipertensão, taquicardia, obesidade, falta de concentração e problemas de circulação, enquanto muda as posições da cama dinâmica, uma mais relaxante que a outra. Apesar do aconchego, a enxurrada de informação me deixa em estado de vigília, e saio bem longe da sonhada soneca na rua Gabriel Monteiro da Silva, a via da decoração mais grifada de São Paulo.
A ORDEM É DORMIR
A marca Hästens disponibiliza "sleep spas" para seus clientes europeus e norte-americanos. Um similar nacional desse serviço é oferecido pela Zissou, que montou uma loja-conceito nos Jardins com um quarto no fundo para os interessados em reservar um teste de meia hora sobre o produto.
Agendei para a hora do desmaio vespertino e, com máscara no rosto e tocas nos pés, fui para o espaço acompanhado por Mariana Hipólito, responsável pelo atendimento.
Por lá, tudo pede para você sossegar: uma manta estampa o símbolo digital de "pausa", e um pôster ordena "fique tranquilo!". Esse refúgio comercial foi projetado para controlar luz, ar e som. Lamentavelmente, o dispositivo de som e a Alexa (assistente de voz da Amazon) não estavam obedecendo meu comando para ouvir um som de lareira, e a trilha do descanso acabou sendo o entregador subindo e descendo as escadas (os colchões são enrolados a vácuo dentro de caixas facilmente transportáveis).
"Posso apagar as luzes?", pergunta Mariana, antes de fechar a porta de vidro. Isolado e no escuro, relaxo, embaralho os pensamentos, mas a traiçoeira naninha não vem. Mariana volta, e peço para ela fotografar minha experiência horizontal. Depois de vários enquadramentos, vejo que não está satisfeita. "Ficou muito fúnebre. Coloca as mãos atrás da cabeça que fica melhor." Olhando depois na galeria de imagens, parece mesmo que entrei no sono eterno, o que seria um exagero do propósito inicial que me levou até ali.
Em tempos pandêmicos, os lençóis e fronhas, feitos de refrescante polpa de bambu, são trocados e higienizados a cada sessão. O colchão queen size sai por volta de R$ 5 mil e é composto por três camadas sintéticas: látex por cima (para dar maciez e refrigeração), viscoelástico no meio (a tal "espuma da Nasa" que se molda segundo os pesos do corpo) e poliuretano no fundo (para dar sustentação). Vende-se lá também "tocas para pets" (R$ 560) com tecnologia similar, para dar igualdade de condição para as todas espécies domésticas.
"Não dá para falar: 'Use nossos produtos que seus problemas estão resolvidos'. Mas dormir bem é uma condição básica, como ter uma boa alimentação. O problema é que as pessoas relacionam o sono com marcas de remédio. Investimos no universo do sono porque é uma necessidade mal explorada", afirma Amit Eisler, que largou a vida de executivo de multinacional para fundar em 2016 a Zissou com dois sócios.
A startup ganhou chancela de luxo ao virar fornecedora dos hotéis Fasano. Sua estratégia de conquista de mercado inclui o oferecimento de 100 dias de teste para o consumidor, que pode devolver o produto nesse prazo e ter o dinheiro de volta. A marca alemã Emma usa a mesma tática com produtos e preços equivalentes.
A FLUTUAÇÃO DO DESEJO
Por último, fui testar também uma rede, a Ortobom, e acabei fazendo o papel de vitrine viva, ou quase isso. Repousar com vista para os transeuntes e motoristas da João Cachoeira, rua comercial do Itaim Bibi, não é exatamente algo restaurador. Fecho os olhos e tenho a noite dentro de mim, mas as buzinas e as conversas pedestres me afastam do estado onírico.
Pelo menos, é melhor testar nesse show-room acolchoado do que deitar em cima da embalagem plástica entre fileiras de geladeiras e lavadoras, como acontece nos gigantes do varejo. "Trabalho há 12 anos com colchão, e uma única vez uma cliente cochilou na loja", conta a gerente Mônica Cruz.
A joia da marca é o modelo Orion (cerca de R$ 14 mil), com tecido egípcio cobrindo andares de espumas "high gel", "comfort cel", "high resilience" e minimolas "superpocket". Por cima, um cobertor tem uma inscrição marqueteira: "o conhecimento médico-científico em busca do sono perfeito". A vantagem do colchão é ter menos flutuação, ou seja, o movimento noturno de um dorminhoco não é sentido pelo outro integrante do casal.
Mas há situações em que a transferência de energia é importante. "Já teve cliente que pediu para não ser tão macio porque o objetivo principal era fazer sexo e não queria muito molejo ou ficar afundando o corpo toda hora", relata Mônica.
Pelas três lojas que passei, vendedores e proprietários repetiram o discurso sobre a importância do sono para a regulação dos hormônios, o que ajudaria inclusive na produtividade e criatividade durante o expediente. Agora preciso decorar esse mantra e convencer o quanto antes meus chefes disso e Zzzzzzzzzzzzzzzz......